A exequibilidade do cheque

A exequibilidade do cheque

Na «Aldeia Global» em que se transformou o mundo onde vivemos e que conhecemos, as transacções comerciais fazem parte do nosso dia a dia, seja enquanto cidadãos, seja enquanto consumidores. Como forma de potenciar essas mesmas relações, nomeadamente as mercantis, desde cedo se sentiu a necessidade de criar mecanismos que as facilitassem, mecanismos como o vulgar cartão multibanco ou o simples cheque. Além disso, razões de segurança também exigiam estruturas próprias. Daí que, já na Idade Media, era usual que os senhores depositassem o seu ouro no local que, na altura, tinha instalações de segurança apropriadas para esse efeito, a oficina do ourives. Entretanto, os artesãos começaram a emitir documentos que representavam o ouro que guardavam. Já no final da Idade Média, alguns desses ourives já emitiam os primeiros bilhetes de banco, tornando-se agentes financeiros e criando estruturas próximas do que hoje conhecemos como uma instituição bancária.

No entanto, há quem atribua ao cheque uma origem mais remota, tendo alegadamente sido inventado pelos romanos por volta de 352 a.C.

Independentemente da sua origem, a verdade é que a simplicidade e o facilitismo inerente a este mecanismo, e outros, nem sempre se traduz na sua eficácia, daí que a sua emissão se deva cercar de garantias, de modo a conquistar a confiança pública, pois só dessa forma é possível aceder aos seus benefícios.

Portugal é um dos países da União Europeia no qual o cheque tem mais importância no conjunto dos meios de pagamento, logo depois dos cartões bancários, daí que nos pretendamos debruçar sobre a problemática da sua exequibilidade, quando o mesmo tenha sido apresentado o pagamento depois de ultrapassado o prazo de 8 dias legalmente fixado para o efeito.

Esta é uma matéria não isenta de controvérsia, de que a nossa jurisprudência tem sido reflexo.

Para que possamos enveredar pelas teias do almejado processo executivo, essencial se torna a consecução de um título de executivo. Se, por vezes, para o obtermos, temos de nos guerrear em acções declarativas durante vários anos, outras há em que a lei nos permite que, de uma forma que se pode assemelhar ao recurso per saltum, executemos imediatamente o eventual património do alegadamente devedor, ultrapassando a fase declarativa e intentando a competente acção executiva.

Assim, elenca o art. 46.º do Código de Processo Civil (adiante C.P.C.) as espécies de títulos executivos legalmente admissíveis.

Na parte que aqui nos interessa, dispõe o actual art. 46.º, n.º 1, al. c) do C.P.C. que apenas podem servir de base à execução «os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético».

Com a reforma do processo civil, em 1995/1996, alterou-se esta alínea, ampliando-se, significativamente, o elenco dos títulos executivos. Desta forma, as letras, as livranças ou os cheques, que antes vinham expressamente nomeados, na medida em que não deixam de ser documentos particulares que contêm a assinatura do devedor, embora não expressamente previstos, continuam a integrá-la, a qual tem agora com um âmbito de aplicação substancialmente mais alargado, no sentido da generalização da exequibilidade dos documentos particulares. Podemos afirmar que a reforma sobrevalorizou o título executivo, aumentando os casos em que os credores se vêem dispensados de recorrer ao processo de declaração a fim de obterem a efectiva reparação dos seus direitos violados.

Esta ampliada extensão da exequibilidade de documentos que, anteriormente, careciam de força executiva, tem colocado várias questões, em virtude de a actual redacção da transcrita disposição legal, ao abrir a porta, potenciar interpretações díspares no que concerne à sua aplicabilidade, de que é exemplo o tema que ora se aborda.

Assim, enunciado o problema, cumpre apresentar, sumariamente, algumas das soluções que jurisprudencialmente têm sido defendidas, sem, no entanto, deixar de tecer algumas considerações pessoais.

Deter-nos-emos, por ora, na problemática da não pouco usual apresentação a pagamento do cheque após ter decorrido o prazo de 8 dias previsto no art. 29.º da Lei Uniforme relativa ao Cheque (adiante LUCh). Prescreve esta disposição que o cheque deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias posteriores à data da sua emissão. Urge então equacionar a possibilidade de a sua apresentação a pagamento ocorrer depois de decorridos os oito dias legalmente previstos.

É convicção da subscritora que o «o cheque, para conservar a sua aptidão de título executivo, tem de ser apresentado a pagamento no prazo de 8 dias.» (cft. Ac. STJ de 02.03.2006, in http://www.dgsi.pt/). «O cheque só é titulo executivo quando, para além de reunir todos os requisitos de validade como título de crédito, o seu pagamento for exigido e recusado no prazo de oito dias subsequentes à data da respectiva emissão» (cfr. Ac.  STJ de 29.02.2000, in BMJ, 494, p. 333). Na verdade, «tal situação traduz falta de verdadeira condição da acção porque o título não possui um dos requisitos necessários à exequibilidade» (cfr. Ac. STJ de 09.03.2004, in http://www.dgsi.pt/), ou seja, a apresentação do mesmo em tempo útil, isto é, no prazo de oito dias posteriores à data da sua emissão.

Há contudo que ponderar outra perspectiva.«Todavia, se é certo que o exequente perdeu o direito de usar da acção cambiária contra o executado, poderá ainda o cheque valer como título executivo, à luz do art. 46.º, al. c) do C. Proc. Civil, agora como simples quirógrafo, ou seja, enquanto documento particular, assinado pelo devedor, desprovido das características que são específicas e próprias dos títulos de crédito» (cfr. Ac. STJ de 09.03.2004, in http://www.dgsi.pt/).

No entanto, neste caso, cumpre distinguir a natureza da obrigação exigida. Com a falta de apresentação atempada a pagamento, a obrigação exigida já não é a obrigação cambiária, caracterizada pela literalidade e abstracção, mas sim a obrigação subjacente, concreta e causal. Assim sendo, há que invocar a causa dessa obrigação no requerimento executivo, embora a mesma possa constar do próprio documento, para que este possa valer como título executivo, mas apenas e só se essa obrigação não emergir de um negócio jurídico formal, pois, caso contrário,«uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221 – 1 CC e 223 – 1 CC) – cfr. Ac. STJ de 09.03.2004, in http://www.dgsi.pt/. Diversamente, não emergindo de um negócio jurídico formal «a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da divida (art. 458 – 1 CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial» (cfr. Ac. STJ de 09.03.2004, inhttp://www.dgsi.pt/), não bastando a invocação da relação cambiária.

Consideramos que, decorrido o prazo de oito dias para a apresentação a pagamento deste título de crédito, caduca a garantia do sacador relativamente àquela relação cambiária, embora sem prejuízo do apelo aos direitos que possam ser invocados e que advêm da relação subjacente à emissão daquele título.

Apesar de aqui vertido o entendimento que nos é mais caro, há também jurisprudência no sentido de que «embora não apresentado a pagamento no prazo de 8 dias a que se reporta o art. 29.º da LUCh, o cheque não deixa, só por si, de ser título executivo»  – nosso sublinhado (cfr. Ac. TRP de 18.12.1997, in CJ, V, p. 129). Embora, em termos práticos, a solução que aqui se proclama possa, sendo o cheque vislumbrado como um simples quirógrafo e a obrigação que o mesmo titula não resulte de um negócio jurídico formal, conduzir à mesma solução, ou seja, à sua admissão como título executivo, nos termos do já citado art. 46.º, n.º 1, al. c), no entanto, no plano dos princípios, a mesma afasta-se do entendimento aqui preconizado.

Também é de referir o entendimento vertido no Ac. TRL, de 22.04.1999, in BMJ, 486.º – 359, nos termos do qual, numa interpretação que pouco tem de restritiva, considera que «em face da nova redacção dada ao art. 46.º, alínea c), do Cód. Proc. Civil, introduzida pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12-12, o cheque passou a ser título executivo, independentemente de não observar as prescrições da Lei Uniforme dos Cheques, nomeadamente por não ter sido apresentado a pagamento no prazo previsto no art. 29.º desta última lei.» ou o Ac. TRE, de 27.01.2000, in BMJ, 493.º – 428 que refere que «atenta a actual redacção do art. 46.º, alínea c) do Cód. Proc. Civil, não está agora o cheque, para efeitos de ser atendido como título executivo, sujeito à apresentação a pagamento no prazo de oito dias a que alude o art. 29.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque».

Assumindo uma posição literalmente oposta, o Ac. STJ de 16.10.2001 (in CJ STJ, III, p. 89) considera que «não pode reconhecer-se força de título executivo quanto à obrigação subjacente a um cheque que não foi apresentado a pagamento nos termos impostos pela Lei Uniforme», tal como o Ac. STJ de 29.02.2000 (in CJ, I, p. 24), segundo o qual o cheque «como mero quirógrafo, não tenha força bastante para importar, por si só, a constituição ou reconhecimento de obrigação pecuniária dos sacadores e avalistas, nem constitua, assim, título executivo, à luz da alínea c) do artigo 46.º do CPC revisto».

Em suma, é também meu entendimento que «o cheque que não foi apresentado a pagamento no prazo a que alude o art. 29.º da Lei Uniforme Sobre Cheques, não é, enquanto tal, título executivo. II – Valendo  como quirógrafo, a obrigação exigida não é a cambiária ou cartular, antes a causal, subjacente ou fundamental. III – Enquanto quirógrafo, o cheque não constitui título executivo à luz do art. 46.º, al. c) do CPC, na redacção que lhe foi dada pelo D.L n.º 329-A/95, de 12-12, desde que o requerimento executivo não contenha qualquer referência à obrigação subjacente que visou satisfazer» (cfr. Ac. TRL, de 22.10.2002, in http://www.dgsi.pt/).

Embora se admita que este entendimento possa resultar na atribuição de uma natureza mista ao processo executivo, simultaneamente de execução e de declaração, em face da redacção da al. c) do n.º 1 do art. 46.º do C.P.C. e daquela que foi a intenção do legislador ao proceder à alteração deste preceito, «a ampliação significativa do elenco dos títulos executivos» conforme consta, ipsis verbis do preâmbulo do D.L. n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, o entendimento contrário restringiria o âmbito de aplicação do mesmo. Ora, o atribuir a natureza de título executivo a documentos particulares que importem a constituição ou reconhecimento de uma dívida cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético e não a atribuir ao cheque, na anterior redacção do preceito aqui expressamente consagrado, que titule uma dívida (relação subjacente), com a invocação de que o mesmo não foi apresentado a pagamento no prazo supra referido, não só contraria a ratio legis subjacente a esta disposição legal, como desvalorizaria este documento em relação aos demais documentos particulares.

Face à divergência, bem decidiu o Ac. TRP de 25.10.2000 (in http://www.dgsi.pt/) que considerou que «sempre que haja divergência na doutrina e na jurisprudência sobre se determinado documento é título executivo, não deve indeferir-se liminarmente o requerimento executivo».

Perante os vários entendimentos relativamente a esta questão, e não só dos aqui explanados, aconselha a prudência que o cheque seja apresentado a pagamento e, se for caso disso, recusado, no prazo de oito dias contados da data da sua emissão.

Dessa forma evitamos a invocação, no requerimento executivo, da relação subjacente, que sempre estará sujeita ao juízo jurisdicional da sua validade nos termos que ficaram indicados no título executivo.

Pelo contrário, emergindo a pretensão exequenda de um cheque, e sendo a pretensão cambiária abstracta, dispensa-se a demonstração da causa da sua subscrição pelos sujeitos cambiários.

E, como muito sabiamente disse Miguel Cervantes, «o valor que não tem por fundamento a prudência chama-se temeridade, e as façanhas dos temerários devem atribuir-se mais à sorte do que à coragem». Assim, não obstante ser entendimento jurisprudencial maioritário a admissão do cheque, apresentado a pagamento após o termo do prazo de oito dias estatuído na LUCh, enquanto documento particular assinado pelo devedor, que importa a constituição ou o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, cujo montante é determinado, embora com a necessidade de invocar a relação a ele subjacente, é sempre melhor apelar à prudência, antes que ser temerário, pois, em face de entendimentos dispares, nem sempre a sorte pende para onde desejamos.